Neste momento de revisão histórica, quando vem a público a discussão sobre os 55 anos da ditadura no Brasil – se houve, se não houve – vale a pena se aprofundar num dos livros mais relevantes publicados no final do ano passado, pela Editora Alameda. Trata-se de “Mulheres na Luta Armada, protagonismo feminino na ALN (Ação Libertadora Nacional)”.
Resultado da tese de doutorado da historiadora Maria Cláudia Badan Ribeiro, na Universidade de São Paulo (USP), o livro preenche lacunas para o estudo da resistência à ditadura de 1964, quando praticamente a única oposição ao sistema eram as ações da guerrilha urbana, no período de 1967 até 1973. Foram 6 anos de enfrentamento sistemático, ignorados pela história oficial, seja de direita, seja da esquerda institucional.
Segundo Carlos Eugênio Paz, o último comandante vivo da ALN, “Os anos de luta armada ficam escondidos atrás das denúncias de torturas, assassinatos e desaparecimentos”… Em sua apresentação do livro de Maria Cláudia, uma brochura de 572 páginas, Carlos Eugênio explica: “Geralmente os relatos e análises do período falam do golpe de estado, das lutas estudantis, chegam à passeata dos cem mil e à promulgação do AI-5, pulando descaradamente para as lutas pela anistia e as greves do ABC no final dos anos 70, e a chamada redemocratização.”
REDE DE SOLIDARIEDADE
Tendo convivido com os maiores líderes da ALN como Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira e Ana Maria Nacinovic, entre tantos outros militantes que deram suas vidas pela liberdade, Carlos Eugênio é testemunha ativa dessa história que se revela pela consciência e competência de Maria Cláudia, pós-doutora pelo Instituto de Altos Estudos da América Latina (IHEAL-Sorbonne Nouvelle) e pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
MULHERES NA RETAGUARDA
Sim, mulheres lutaram contra a ditadura, geralmente rompendo com suas famílias que sonhavam com um futuro cor-de-rosa para elas, de preferência “casadas, recatadas e do lar”. Algumas fugiram do roteiro tradicional e foram à luta! Maria Cláudia reconstitui o mosaico da participação política das mulheres, através de testemunhos. São mulheres que “teceram uma rede de solidariedade na retaguarda da luta armada”, diz a autora.
A densa pesquisa se realizou em processos da Justiça Militar, que levou a 330 nomes de mulheres, entre 1968 a 1979. No total, foram 45 depoimentos de mulheres brasileiras, feitos em vários estados, e o da militante chilena Carmem Castilho, em Paris. Pesquisas nas fontes também foram feitas em arquivos da Polícia Política e municipais, de São Paulo e Rio de Janeiro, Acervo e Anexos do Brasil Nunca Mais, Arquivo Edgard Leuenroth, Coleção Comitê Brasileiro de Anistia, Coleção de Cartas de Jessie Jane, Coleção Presos Políticos, Fundo Carlos Prestes, Movimento Estudantil, Fundo Elizabeth Lobo, Centro de Documentação e Memória da UNESP, panfletos e periódicos da ALN.
A verdade é que “O golpe militar de 1964 trouxe um repertório de violência, controle e regulação da vida cotidiana”, escreve Maria Cláudia. E foi nas entrelinhas desse repertório que a autora encontrou o foco de sua tese, revelando a mulher militante em sua complexidade, desde aquelas que pegaram em armas, as que fizeram treinamentos em Cuba, até as que combateram discretamente, na logística, dando sustentação às ações armadas, formando redes de solidariedade. São estudantes, chefes de família, trabalhadoras, artistas, empresárias, donas de casa, professoras, que silenciosamente deram sustentação à ALN, prestando vários tipos de colaboração, exercendo um papel primordial na retaguarda do movimento armado, num dos momentos mais repressivos da ditadura no Brasil. Uma ditadura arbitrária, cruel, sangrenta, que durou 21 anos: de 1964 a 1985.