Nas sociedades antigas, o processo de morte por idade era um processo natural. Não havia a necessidade de intervenção e o foco cultural e religioso estava em encontrar-lhe um significado, dando-lhe um lugar abrangente na experiência humana e fazendo a passagem da vida para a morte tão confortável quanto o possível. Naqueles idos tempos, a morte era repentina e lideravam as causas infecciosas, os acidentes e aquelas relacionadas ao parto.
Com as melhorias de condições de moradia, de trabalho, alimentação, suprimento de água e dos métodos de cuidados médicos, as causas das doenças foram descobertas e a morte repentina passou a ser menos comum. Nós, seres humanos, no nosso fim da vida adquirimos, quase todos, uma doença crônica degenerativa, como câncer, doença cardiovascular, diabetes ou outras existentes no momento atual. Os hospitais passaram a ser os locais viáveis para prorrogação da vida e estudos dos métodos de cancelamento da vida na terra para o além. O processo de morrer tornou-se medicalizado, sendo prática o uso compulsivo da tecnologia para manter a vida dos pacientes que estão realizando está passagem.
Surge então um conflito sobre o significado e o lugar da morte humana. Diante de doenças crônicas incuráveis e de evolução progressiva, os pacientes e sua família têm medo que a tecnologia médica, implacável em sua obsessão por cura, estenda a doença em um morrer prolongado, perpetuando a dor intratável e despoje o paciente de sua dignidade. Na medida em que todos os pacientes, assim como nós mesmos iremos morrer mais cedo ou mais tarde, a garantia de conforto e dignidade de todos no momento da morte deveria ser natural na relação médico paciente. Porém, muitos profissionais de saúde receberam treinamento inadequado para conduzir o processo de morrer.
Os cuidados no fim da vida, conhecidos como cuidados paliativos, englobam um conjunto de teorias e práticas que têm por objeto central o processo de morrer e compreendem os cuidados que promovem qualidade de vida aos pacientes e seus familiares diante da doença que ameaça a continuidade da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento. Requerem a identificação precoce, avaliação e tratamento impecável da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual. Os cuidados paliativos podem ser aplicados em um estágio precoce da doença, paralelamente a outras terapias enfocadas em prolongar a vida, como quimioterapia, radioterapia e também pode abranger a realização de exames necessários para diagnosticar e tratar melhor as complicações clínicas dolorosas.
Morrer é universal e a morte deveria ser um tempo de paz. Os cuidados ao final da vida têm como princípio privilegiar a vida e contemplar a morte como processo natural, sem tentar precipitar nem atrasar o seu momento. Não deve ser uma prática restrita à especialistas, mas deve ser um dos pilares principais no processo de formação profissional de saúde, que deve estar preparado para confortar sempre e curar quando possível. Cabe a nós, profissionais em todos os níveis de atenção, oferecer ao paciente com doença avançada, uma morte livre de sofrimento para si e sua família e de total acordo com seus desejos, em especial aqueles que estão se aproximando da morte no envelhecimento.
Artigo publicado na edição de novembro de 2010 do jornal O Saquá (edição 127)
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