
É natural que a Rede Globo faça homenagens a Glória Maria, a primeira jornalista negra que brilhou nas telinhas da TV. Eu convivi com Glória Maria, nas coberturas jornalísticas dos artistas musicais, nos shows no Rio de Janeiro e em outras ocasiões, badalações, espetáculos… Mas só nos olhávamos, com uma distância respeitosa entre nós. Ela, uma personalidade global. E eu, no exercício do jornalismo de resistência, numa época de luta contra a ditadura no Brasil.
Naqueles anos 70, tudo era proibido para nós, jovens, ativistas políticos, estudantes, operários, intelectuais. Havia ameaças nas esquinas e vivíamos atordoados com as prisões e desaparecimentos de companheiros. Mas algumas vezes, tivemos que escancarar! Foi o que ocorreu quando houve a prisão arbitrária do cantor português Sérgio Godinho, pela segunda vez no Brasil. Ele veio de Portugal e não chegou a sair do aeroporto Tom Jobin, acusado de ter um baseado de maconha no seu saco de viagem, o que não era verdade! Na verdade, ele já tinha sido preso no Brasil 10 anos antes, em 1971, e seu nome ficou nas listas de expulsos do país.
Quando retornou para fazer contatos musicais com artistas brasileiros, como Milton Nascimento e Caetano Veloso, foi preso novamente e correu a notícia de que ele tinha até tomado choques elétricos na cabeça… Ele precisava ser solto! A esquerda então se mobilizou para fazer espetáculos públicos no Rio, para denunciar a prisão de Godinho e lutar por sua liberdade. Na Cinelândia, palco histórico das manifestações, ergueu-se um pequeno palco para que os artistas se apresentassem, com apoio do maior nome da cultura musical: Chico Buarque!
Era o final de 1981. E, no início do ano, eu havia viajado numa caravana musical liderada pelo Chico, com participação de Dorival Caymmi, Martinho da Vila, Yvone Lara, Clara Nunes, Djavan, Elba Ramalho, Geraldinho Azevedo, João Nogueira, João do Vale e outros para a República Popular de Angola. De lá eu trouxe um diário de bordo publicado na Revista Módulo, editada pelo arquiteto Oscar Niemeyer.
Naquele final do ano, eu tinha hospedado em meu apartamento o cineasta português Rui Simões, que quando soube da prisão de Godinho correu para fazer um vídeo, mas faltavam fitas para gravar. Eu estava na porta da Polícia Federal no Rio, entre jornalistas, aguardando uma saída anunciada de Godinho que não ocorreu. Glória Maria estava lá e eu me aproximei discretamente. Pedi a ela que conseguisse para o Rui Simões pelo menos uma fita para finalizar o documentário sobre a prisão do Godinho. Ela me olhou no fundo dos olhos e disse: “Vou falar com o chefe!”.
Dia seguinte, alguém ligou da Globo, informando que tinha um material na portaria da Globo no Jardim Botânico, para eu ir buscar. Fui e recomeçamos a gravar. Primeiro gravamos o mar e depois as comemorações do final de ano no Rio de Janeiro, com chuva de papel picado nas ruas do centro do Rio. À tarde, através de um rádio, soubemos que Godinho tinha sido solto e estava no aeroporto para ser deportado para Portugal. Saímos em alta velocidade, mas só tivemos tempo de ver o avião decolando com o Godinho no Galeão. Dias depois, Rui também embarcou para Lisboa. O vídeo, inacabado, já tinha título: Amor de Iemanjá.
Quando Glória Maria se despediu do mundo, em 2 de fevereiro, há dois anos, tive certeza de que ela era filha de Yemanjá, ou a própria Yemanjá, quando nos possibilitou aquela fita para que pudéssemos finalizar o vídeo que ela não viu, cuja cópia Rui só me enviou muito tempo depois. Mas a cena ficou gravada em nossas mentes, para eternidade. Para sempre.